quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mozarts Assassinados

Arlindo
Mozarts Assassinados - lembrando Antoine de Saint-Exupéry |

Sempre procuram alguns dizer que Arte e Cultura são somente bibelôs – ou seja, enfeites “bonitinhos” e cativantes - na existência humana. Será? O que são os Artistas; o que são as Pessoas?

Antoine de Saint-Exupéry foi um aviador-escritor que fez, entre tantos feitos, grandes obras-primas como “O Pequeno Príncipe” e “Terra dos Homens” - neste segundo ele nos falará, no finalzinho do livro, sobre os “Mozarts assassinados”.

Discorre, o grande escritor, sobre a singeleza de uma criança que ele viu num trem em viagem pela Europa. Eram as pessoas presentes nesse trem, em grande parte, migrantes em busca de melhores condições de vida, de trabalho; e que no entanto, após terem servido por algum tempo numa região, tinham que novamente migrar para outros locais, ou tentar uma volta para a antiga pátria. As pessoas mais velhas, e incluíam-se os pais dessa criança, não tinham mais as formas belas e cheias de vida como as da criança. E, essa mesma criança, que o escritor compara a um Mozart em potencial, passaria pela “máquina de entortar homens” - ou seja, pelos dissabores de uma vida sem grandes realizações pessoais - servindo a criança unicamente de mais uma peça da grande engrenagem desumana que a sobrevivência do mais forte impõe.

Isso seria de algum modo modificado pela Arte e Cultura? Isso é um ponto que o autor irá citar sutilmente através da comparação da criança com Mozart: todos os seres podem ser Mozarts (e essa é a comparação que ele faz - e ao invés de Mozart poderia ser qualquer outro artista, erudito ou popular). E, se todos podem ser Mozarts, por que, de fato, isso não se concretiza? Por que são assassinados?

Vive-se numa máquina que procura tirar a capacidade criativa dos homens. Uma pessoa pensante e criativa nem sempre é vista como útil - pois ela não “se adéqua ao sistema”. Com o questionamento e com a criatividade aumentados, o homem sempre ficará mais atento ao que lhe acontece.

Provoco: não é interessante então que o homem tenha seu lugar ao sol da Cultura (não é?). Se isso for buscado corre-se o “risco” de se criar uma sociedade mais e mais lúcida (luz) e autônoma. Uma das formas de controle sutil é simplesmente negar o direito de Arte e Cultura; e isso, como escrito, é sutil: coloca-se uma condição que seja “oficiosa” de planejamento cultural mas que em verdade é para procurar subordinar a vontade popular a uma vontade direcionadora e restritiva. Todos os dias os Mozarts são assassinados pela não abertura de frentes culturais e outras.

Voltando ao texto do livro “Terra dos Homens” o autor cita o exemplo de uma roseira: quando se encontra uma nova com características sublimes o que se faz? O jardineiro procura cercá-la de todos os cuidados para que ela produza novas e belas rosas. Mas por que com os homens isso não ocorre?

Naquele vagão de trem em que ele está, ao contemplar a face da criança (e nós podemos imaginar isso), o autor fica indignado ao constatar que a humanidade cria sua própria maneira de transformar homens em barro - a vida que existe dentro de cada um, o sopro divino - ficou aprisionado nessa massa cada vez mais feia.

A roseira, cultivada (Cultura), é mais importante que as pessoas? Não deveriam ter as pessoas as mesmas condições de desenvolvimento?

Sejamos artistas, e, mais ainda, sejamos ativistas de Cultura. Façamos com que o barro que guarda o sopro vital possa ser remodelado e torne-se o que ele tinha em Potência quando feito o Ato de sua criação: seja verdadeiro artista, seja verdadeiro humano, dotado em sua essência da divindade que o fez. Não criemos uma sociedade de autômatos (ou seja, sem discernimento próprio); criemos uma sociedade em que as pessoas cultivem-se enquanto artistas e ativistas.

Nem todos serão artistas e, o que deve ficar compreendido, é que o que se perde todos os dias são os Mozarts enquanto capacidade de enobrecimento da humanidade. Toda profissão, toda ocupação é digna e necessária. Todos somos Mozarts; todos somos, em algum grau, pessoas que têm em sua essência a qualidade positiva incentivada ou destruída pelas circunstâncias e por nós mesmos. Fiquemos, no entanto, atentos e cientes que a contribuição cultural provém de nós mesmos. Não destruamos os Mozarts que nascem todos os dias; e, os que conseguirmos resgatar, resgatemos. A Arte e Cultura podem contribuir - mas sejamos atentos e responsáveis.

"Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o Homem." - Antoine de Saint-Exupéry

(publicado em: http://www.otrampolim.com.br/ler_noticia_colunista.php?catn=3&uid=127 - 05 de Janeiro de 2010 - Salto/SP)

Um comentário:

  1. Seu texto, seu pensamento sao espetaculares, reflexo de nao só de lúcida como tb bela e nobre alma!! Dormirei hj mais feliz!! Que "o Espírito soprando sobre a argila" nao permita mais q Mozart seja assassinado e se desdobre em cada criança!

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